"A arquitetura, a indumentária, a cenografia de interiores são recursos normais a que se recorrem para recompor uma época na qual se quer ambientar um filme, uma peça de teatro, uma novela de TV. Mas para se ambientar o intelecto do homem, seus conhecimentos sobre as coisas e o mundo é preciso percorrer seus livros sobre os quais ele investiu tempo e recursos.
No caso do professor José Mendonça, sua Biblioteca permite a reconstrução de sua inteligência, uma visão ampla de suas preocupações e interesses, já que sua cultura foi diversificada, mesmo quando direcionada para alguns segmentos específicos como o Direito e a Igreja. Ao entrarmos na Biblioteca José Mendonça, deparamos exatamente com o mundo de um intelectual que teve a Segunda Guerra Mundial atracada no meio da vida. Pelo gosto de suas coleções, preocupação com assuntos e tipo de leitura, consegue-se perceber o tipo de cultura com a qual este homem se identificava.
São 4.075 volumes, catalogados, abrangendo Jurisprudência (0 - 893), Biografia (894 - 915), Folhetos Diversos (916 - 1072), História do Brasil (1073 - 1165), História Geral (1166 - 1331), Filosofia (1132 - 1400), Sociologia e Antropologia (1401 - 1505), Política (1506 - 1631), Religião Católica (1632 - 1851), Outras Religiões (1852 - 1964), Psicanálise, Psicologia, Parapsicologia (1965 - 2019), Ciência e Educação (2020 - 2301), Rotary (2302 - 2315), Dicionários e Enciclopédias (2316 - 2382), Literatura Geral (2383 - 2459), Poesias (2460 - 2665), Teatro (2666 - 2683), Literatura Portuguesa (2684 - 2822), Literatura Francesa (2823 - 3068), Literatura Inglesa e Americana (3069 - 3187), Literatura de Outros Países (3188 - 3316), Literatura Brasileira (3317 - 3593), Parte Geral: Arte, Revistas, etc. (3594 - 4075).
Justifica-se a doação da
Biblioteca José Mendonça à Fundação Cultural de Uberaba e não à Biblioteca Municipal como se poderia pensar ser correto. A sede de nossa entidade é local que se ocupa por posição de defesa do patrimônio histórico e arquitetônico de Uberaba. Também ali nasceu a esposa de José Mendonça. E mais: a diretoria de cultura da entidade, propositadamente fez reconstituir a Biblioteca à semelhança da estrutura que tinha originalmente na residência do historiador. Só na sede da Fundação Cultural esta Biblioteca poderia ser remontada segundo este critério cenográfico e histórico. Numa outra Biblioteca ela se diluiria, ficando esparsa entre as várias prateleiras e seções já existentes. Aqui, ela se resguarda com muito mais possibilidade, de um fator comum nas bibliotecas brasileiras de consulta: o desaparecimento de livros. Na Fundação Cultural, a leitura de obras da Biblioteca José Mendonça será permitida, no recinto. Ao assumir estas posições citadas, na Fundação Cultural de Uberaba, a Biblioteca José Mendonça toma caráter histórico e inédito em nossa cidade; o de, justamente permitir que não se desintegre o perfil cultural e intelectual de um dos principais vultos da história de nossa cidade. Grifando a importância do fato, lembro as disponibilidades de espaço que nossa entidade oferece a outros procederes semelhantes.
Ao comportamento do pai, José Mendonça, que teve a vida devotada à criação e utilização de sua Biblioteca, corresponde o comportamento dos filhos que, tomados de total abnegação, evitaram a dispersão da herança cultural paterna (colocando-a à venda) para fazerem de cada cidadão o verdadeiro herdeiro de seus bens físicos e culturais. A Biblioteca de seus pais pertence agora ao povo de Uberaba. A herança democratizada de que tanto necessita esta cidade, este país.
Existe uma feliz coincidência neste ato de enriquecimento do patrimônio da Fundação Cultural e do povo de Uberaba. A doação da Biblioteca, sem ônus algum para a entidade recebedora, se faz justamente quando se comemora os 25 anos da Academia de Letras do Triângulo Mineiro. Como se sabe, dr. Jose Mendonça é o fundador da notável ALTM.
Nossa gratidão aos filhos de Maninha e dr. José Mendonça: dr. Mário Alexandre Campos, dr. José Campos Mendonça, dr. Vicente de Paulo Campos Mendonça e dra. Liana Mendonça Silva por fazerem do carente povo os herdeiros deste acervo; obrigado pela confiança em depositar sob nossa administração, acervo tão valioso. O amor devotado ao povo de sua cidade permanecerá em tramite a cada consulta que se fizer na Biblioteca José Mendonça."
Texto de Jorge Alberto Nabut, Diretor de Cultura da Fundação Cultural de Uberaba, extraído do Caderno de Memórias - nº 2 - ano 4 - Março/1987, lançado por ocasião da inauguração da biblioteca "José Mendonça", na Fundação Cultural de Uberaba.
"Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é ler, raro o refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas".
As palavras acima, proferidas por Ruy Barbosa em "Oração aos Moços", servem de pórtico, dos mais adequados, à apresentação, que nos propomos a fazer, da BIBLIOTECA JOSÉ MENDONÇA, uma vez que se ajustam, com absoluta fidelidade, à postura que, como leitor, sempre foi assumida por este inolvidável uberabense, e ao sentido e alcance que, essencialmente, para ele tiveram os seus livros.
Em verdade, adquiridos no correr de mais de meio século - com rigoroso critério seletivo, acurada avaliação da sua importância, continuado e crescente interesse pela diversificação dos conhecimentos que neles poderiam ser hauridos, e, quantas vezes, com muito sacrifício - os 4000 volumes que compõem este acervo cultural, hoje doados, com profunda emoção à Cidade de Uberaba, não devem e nem podem ser identificados - que assim nos seja permitido dizer - apenas como mais uma coleção de livros posta à disposição da coletividade, mas, também e marcadamente, como evocação e testemunho permanentes de uma personalidade que se forjou, se desenvolveu e se aprimorou na meditação, e no convívio diuturno e ininterrupto com os mais autênticos valores do espírito.
Este é o enfoque que, pela veracidade que encerra, ousamos pedir seja dado à BIBLIOTECA JOSÉ MENDONÇA, por todos aqueles que se tornarem seus freqüentadores, ou meros conhecedores: que nela não veja, tão somente, um simples e numeroso conjunto de livros, alguns de maior, outros de menor valor, mas um todo cultural, inteiramente lido e relido, que plasmou e engrandeceu a pessoa moral e intelectual daquele que a constituiu, no correr de toda a sua vida, com tanto amor e tanto entusiasmo.
Mas não é só. Revestida de grava falha - porto que omissa quanto a um dos seus aspectos mais expressivos e sensíveis - seria a referência à BIBLIOTECA JOSÉ MENDONÇA apenas como o instrumento de que ele, primordialmente, se utilizou, para alcançar o patamar tão elevado, que atingiu, de ascensão espiritual.
A esse aspecto, fundamental será acrescentar, para uma compreensão completa da singularidade e da importância desta biblioteca, a valoração trazida por JOSÉ MENDONÇA, a cada livro lido, através de anotações e observações pessoais, de próprio punho, lançadas em suas margens, rodapés e interiores de capas e contracapas.
De Ramalho Ortigão disse Eça de Queiroz que, se foi ele o autor das Farpas, não seria inexato dizer-se que as Farpas foram as autoras de Ramalho Ortigão, pois, o fato de escreve-las, tem-no "feito", tem-lhe dado " a disciplina de raciocínio, a observação, a exclusiva fé na ciência, a crítica, uma bela elevação mora, uma forma magistral".
Pois inexatos também não seremos, agora, dizendo que se os livros que formam a biblioteca, aqui apresentada, foram os autores, em acentuada proporção, da personalidade de JOSE MENDONÇA, este, com os acréscimos de seus comentários feitos nos próprios exemplares, transformou-se num autêntico co-autor dos livros que leu, enriquecendo, ampliando e questionando diversas e inúmeras de suas passagens, com a lucidez de seu raciocínio, a vastidão de sua cultura, a honestidade e seriedade de suas críticas.
Pode-se afirmar, sem qualquer margem de erro, que um mesmo livro se mostra bem diverso de si mesmo, conforme se trate de exemplar adquirido em uma livraria, ou do que tenha sido lido e anotado por JOSÉ MENDONÇA.
E é nisto que reside, para o público, o valor raro e excepcional desta biblioteca.
"Feito" pelos seus livros, JOSE MENDONÇA, complementar e reflexamente "fez", da maioria deles, volumes inéditos, ímpares, peculiares.
O leitor desta biblioteca, ao compulsar os seus quatro milhares de publicações, não se deparará, exclusivamente, com os textos gráficos que as compõem. Em grande parte delas será privilegiado - no campo da Religião, da Filosofia, da Psicologia, das Ciências, das Artes, da prosa Literária, da Poesia, do Direito, da Economia, etc, etc. - com anotações manuscritas densas de conteúdo, ora ampliando e estendendo idéias apenas afloradas pelos autores; ora apontando novos argumentos que mais solidamente as justificam; ou então melhor explicitando as manifestadas com menor clareza; ou atualizando, à luz de conhecimentos novos que surgiram, conceitos já ultrapassados; ainda reportando-se, para conferir maior consistência e certeza às idéias e fatos expostos nos livros, a outros escritores que comungam do mesmo pensamento, ou relatam acontecimentos sem divergência com o autor, novamente se reportando, já agora para fim de mais completa análise e melhor julgamento do sustentado ou informado pelo autor, a escritores que pensam diferentemente sobre o assunto, ou descrevem fatos com cores e contornos dessemelhantes; ou, por último; contendo uma crítica pessoal, sempre sincera, construtiva e fundamentada, quer apoiando e exaltando os princípios e valores que lhe pareçam eficazes, úteis, puros e verdadeiros, quer contestando, com fatos e razões contrárias, aqueles que se lhe afiguram distorcidos, errôneos, falsos e prejudiciais.
Eis porque, podemos repeti-lo, os livros da BIBLIOTECA JOSÉ MENDONÇA foram "feitos", também, por ele, que a quase todos imprimiu, com as anotações neles lançadas, os tão valiosos acréscimos oriundos da sua cultura, da sua inteligência e, sobretudo, da sua reflexão.
Sim, porque tomando, agora, as palavras de Ruy Barbosa, já podemos ter a certeza cristalina e inabalável de que JOSÉ MENDONÇA não foi aquele armário de sabedoria armazenada, que tivesse se limitado a somente ler os seus livros, memorizando-os mecanicamente; ao contrário, sobre eles muito pensou, muito refletiu, sempre e continuadamente, absorvendo os seus ensinamentos; dando, a muito deles, em suas anotações, uma dimensão maior ou o sentido atualizado que estavam a reclamar; transmudando-os, pela meditação, em idéias próprias; e, acima de tudo, aplicando-os, proveitosamente, em todas as ocasiões e circunstâncias de sua vida.
E aí estão o significado maior, o valor e o simbolismo especialíssimos desta biblioteca: em completa simbiose com os seus livros, JOSE MENDONÇA deles se valeu não para uma acumulação egoística, vaidosa e socialmente inútil da cultura,mas, para deles retirar a aplicar a ciência, o equilíbrio, a sensatez, o destemor intelectual e a elevação mora, a capacidade de sacrifício e a realização contínua da justiça e da bondade, valores estes cuja transmissão aos seus semelhantes - pelo convívio com a família e com os amigos, pelos artigos na imprensa, pelos livros publicados, pelos discursos proferidos, pelas aulas ministradas, e, até mesmo, pelas conversas informais - é recordada, com emoção e carinho pelos que o conheceram, como o sinal mais distintivo e marcante do objetivo supremo que se propôs, e que tão plenamente realizou: o de fazer de seus conhecimentos um profícuo e desinteressado instrumento da prática do bem.
Esta é a justificativa que, superiormente a qualquer outra, nobilita e dignifica o esforço, tão desgastante mas também tão vivificador, de aquisição de uma cultura sólida e autêntica: a de utiliza-la em proveito da comunidade em que vivemos.
JOSÉ MENDONÇA assim a entendeu, com o apoio e compreensão que, moldados no amor, na inteligência e na dedicação sem limites, diariamente lhe foram proporcionados por sua esposa, MARIA CAMPOS MENDONÇA, d. Maninha, mulher de excepcional sensibilidade, e que - pela atmosfera de paz, de tranqüilidade, de otimismo, de animação, de alegria e de fé que indomitamente instaurou e manteve no lar da família - constituiu-se, sem dúvida, em um dos alicerces maiores, senão mesmo no maior de todos eles, com que contou JOSÉ MENDONÇA para a formação, organização e sentido mais amplo e profundo desta palavra, de sua companheira de todas as horas. JOSÉ MENDONÇA, com certeza, não teria constituído, com as características que a identificam e tanto a valorizam, a biblioteca ora apresentada.
Que destino lhe dar?
Vendê-la? Dividi-la entre parentes amigos ou entidades de estudo?
Estamos certos de que, na bem-aventurança em que hoje se encontra, JOSÉ MENDONÇA estará aprovando, com aquele sorriso simples e bondoso nele sempre estampado, o ato que agora praticamos: o de sua doação - íntegra, completa, indivisível - à sua Uberaba, cidade que ele tanto amou, a cujo progrssso espiritual dedicou toda a sua vida, e da qual sempre recebeu - de suas autoridades, de suas organização públicas e privadas, de seu povo em geral - permanentes manifestações de respeito, de afeto e de admiração.
À cidade de Uberaba, na pessoa de sua Fundação Cultural, fazemos entrega, neste momento, com um misto de intensa alegria e de infinita comoção da BIBLIOTECA JOSÉ MENDONÇA.
Que UBERABA a receba como derradeira homenagem do filho que, constantemente, a trouxe no coração."
Pronunciamento de Mário Alexandre Campos Mendonça em nome da Família JOSÉ MENDONÇA - Uberaba, 28 de março de 1987. Texto extraído do Caderno de Memórias - nº 2 - ano 4 - Março/1987, lançado por ocasião da inauguração da Biblioteca "José Mendonça", na Fundação Cultural de Uberaba.